SÍNDROME DE CUSHING – QUANDO A SUPRARRENAL TRABALHA DEMAIS
Harvey Williams Cushing era o cara. Estudou Artes em Yale, Medicina em Harvard, internato no Massachusetts General Hospital e residência no Johns Hopkins. Em 1979 morreu, aos 70 anos, o homem considerado o pai da neurocirurgia moderna.
O negócio, amiguinhos, é que o pai da neurocirurgia também é o tio-avô da endocrinologia. Uma das maiores contribuições da carreira de Will foi descrever a Síndrome de Cushing.
QUE QUE ISSO?
A Síndrome de Cushing é um quadro clínico típico que ocorre quando as glândulas suprarrenais estão em situação hipersecretante, ou seja, estão estão trabalhando além do necessário.
MAS POR QUE?
O que você já sabe é que as adrenais são motivadas a trabalhar a partir da secreção de ACTH(hormônio adrenocorticotrópico), vindo da hipófise, que, por sua vez, é estimulada pelo CRH (hormônio liberador de corticotrofina), secretado pelo hipotálamo. Agora que você já lembrou o que você já sabia, vamos entender porque as adrenais trabalham demais às vezes:
1) Problemas no eixo hipotalâmico-hipofisário
O eixo hipotalâmico-hipofisário (EHH) é o chefe das adrenais. E, às vezes, como todo chefe, ele dorme de calça jeans e desconta nos funcionários, manda e desmanda. É bem o caso de um tumor na hipófise, quadro clínico de 90% dos casos de Síndrome de Cushing.
De onde vem esse tumor maldito?
Uma explicação plausível pra ocorrência de um tumor hipofisário nesse caso é justamente ahipersecreção de CRH pelo hipotálamo, que é, na nossa história, o chefe do chefe. Essa hiperestimulação da hipófise pode acabar gerando um hiperplasia (crescimento anormal) e, posteriormente, a formação de um tumor. Esse tumor vai crescendo até achar que já tá grandinho o suficiente, fica revoltado e para de ser controlado pelos fatores reguladores do sistema nervoso central e pelos níveis séricos de cortisol (que deveriam contrabalancear o estímulo à sua produção).
E aí, como você sabe se um tumor hipofisário é causado ou não por influência do CRH hipotalâmico? Simples, faz assim ó: acompanha o paciente em longo prazo. Remova o tumor hipofisário (a cirurgia é feita pelo nariz, acredite se quiser. Enfiando uma cânula lá no fundo e roendo um ossinho chamado esfenóide, você chega no lugar do cérebro certinho onde fica a hipófise!) e verifique ao longo do tempo se há nova formação de tumor. Se o tratamento for adequado e houver recidiva, provavelmente o hipotálamo está influenciando no processo.
2) Produção ectópica de ACTH ou CRH
“Ectópico” significa “fora do lugar onde deveria estar”. Ou seja, os hormônios-chefe da suprarrenal estão aparecendo em algum outro lugar que não no EHH. Essa secreção ectópica é realizada por tumores. Esses safadinhos secretam substâncias proteicas indistinguíveis bioquimicamente daqueles ACTH e do CRH provenientes do cérebro. Pra piorar, normalmente os sinais e sintomas característicos da síndrome estão ausentes nesse caso, prevalecendo apenas intolerância à glicose e a acidose sanguínea, com baixos níveis de potássio. Esses tumores normalmente se localizam nos brônquios, timo, pâncreas ou ovários. Como a secreção se ACTH, nesse caso, é acompanhada de níveis sanguíneos altos de substâncias precursoras desse hormônio, é natural que elas exerçam também o mesmo efeito do próprio ACTH, que é a hiperpigmentação da pele. Pelo menos nesse caso a gente sabe que o tumor não se localiza na suprarrenal, restando como possibilidades o cérebro (secreção de ACTH hipofisário) ou um outro tumor de secreção ectópica.
3) Neoplasias das próprias glândulas suprarrenais
O problema também pode ser em quem faz o trabalho, ao invés de quem manda. Em geral, essas neoplasias são unilaterais, ou seja, ocorrem em apenas uma das duas glândulas. Esse quadro ocorre em 20 a 25 porcento dos casos de Síndrome de Cushing, sendo que metade das vezes, essa neoplasia é maligna. Uma causa comum desses tumores é uma doença genética auto-imune, a displasia cortical multinodular pigmentada, que causa neoplasias nodulares nas suprarrenais. O nome “pigmentada” é porque, em algumas ocasiões, os pacientes apresentam características semelhantes à secreção aumentada de ACTH, como a hiperpigmentação cutânea (que eu já falei ali em cima).
4) Causas iatrogênicas
Essa é a causa mais comum, na verdade. Iatrogênico é o nome que a gente dá quando a causa de uma condição é proveniente do próprio tratamento que se dá a determinada doença. Um erro médico, por exemplo, é uma fator iatrogênico. Nesse caso, o problema é a administração acentuada de esteróides por algum motivo. A Síndrome de Cushing iatrogênica é bem fácil de ser identificada e tratada, basta se basear num exame de sangue simples e num histórico clínico e controlar a medicação tomada.
E QUAIS SÃO OS SINTOMAS?
O aumento da gliconeogênese no fígado gera um aumento da glicemia, que, casado com a secreção aumentada de aldosterona (hormônio também produzido na suprarrenal), gera um aumento da pressão sanguínea. A resistência à insulina, induzida pelo cortisol, causa a intolerância à glicose, ou seja, um quadro de Diabetes Mellitus, notável facilmente em 20% dos casos.A secreção aumentada de cortisol mobiliza tecidos periféricos que sustentam nosso corpo, ricos em proteínas, para realizar agliconeogênese, tá lembrado? Então. Essa mobilização é como se eu utilizasse lascas da parede do meu quarto pra fazer um castelinho. Logo logo essa parede vai enfraquecer. Esse enfraquecimento, quando é muscular, causa fadiga e cansaço rápido, sintoma bem freqüente da doença. Quando é relativo aosossos, causa osteoporose, outra situação típica que, às vezes, chega a gerar fraturas patológicas. Quando são das fibras de colágeno da nossa pele, faz com que o paciente tenhahematomas freqüentes, devido a uma fragilização dessas estruturas que dão firmeza ao maior órgão do corpo. Outra característica típica da síndrome é a deposição de gordura em locais bem específicos, como o tronco, causando a obesidade central; e a área entre as escápulas, pegando desde o pescoço até as costas, gerando a chamada “giba de búfalo” (caso você não saiba o que é isso, digite búfalo no Google Imagens e veja você mesmo). Outro lugar onde a gordura tende a se acumular é na face, principalmente na parte superior, deixando o paciente com uma situação conhecida como “face em lua cheia”, que é tipo um smile da vida real, só que ao invés de amarelinho, é avermelhado, devido ao acúmulo de sangue nos vasos, condição chamada face pletórica. O crescimento exagerado do abdome causado pela deposição de gordura gera estrias abdominais, provenientes do rompimento e cicatrização das fibras de colágeno da pele. Essas estrias são clássicas por serem grandes, numerosas e avermelhadas.
Na mulher, essa hipersecreção pode gerar ainda conseqüências dos hormônios esteróides androgênios, também produzidos nessas queridas suprarrenais. O aspecto tipo é o maior aparecimento de pêlos (hirsutismo), acne facial e amenorréia ou oligomenorreia (ausência ou diminuição do fluxo menstrual).
Os sintomas mais gerais, obesidade, diabetes, hipertensão e osteoporose, são bem inespecíficos. Entretanto, a presença das estrias abdominais e a freqüência de aparecimento de hematomas ajudam bastante a diagnosticar a síndrome.
COMO É FEITO O DIAGNÓSTICO?
Basicamente, você tem que demonstrar o alto nível de cortisol circulante e a incapacidade de suprimir a secreção de cortisol quando o nível de glicocorticóides no sangue está alto. Depois de diagnosticada a síndrome, os próximos testes são feitos para achar a fonte do problema.
Para verificar os níveis de cortisol, existe um teste clássico, que parte do princípio de que, se houve muito glicocorticóide no sangue, isso serve como um aviso pra hipófise para de secretar ACTH, porque não precisa de mais cortisol no sangue. Simples né?
Aí você manda seu paciente tomar um comprimidinho de 1mg de dexametasona, um glicocorticóide potente, à meia-noite, e pede pra ele coletar sangue e urina às 8 da manhã. Os níveis de cortisol sanguíneo e urinário TÊM DE TER DIMINUÍDO. Se diminuiu, ok, tá tudo bem, abra um espumante e peça uma tábua de frios. Se não diminuiu, ou diminuiu pouquinho, significa problema. A gente só não sabe onde está ele, mas existe um problema.
Aí começam as investigações para buscar o causador da discórdia no organismo. Você pode começar relacionando os níveis de cortisol sanguíneo com os níveis de ACTH. Se não houver um aumento correlativo, isso significa que as glândulas estão trabalhando a mais sem serem mandadas, ou seja, existe um tumor na suprarrenal, que deve ser procurado em exames de imagem. Agora, caso se verifique uma correlação entre os hormônios, alguém tá mandando a glândula trabalhar. Pode ser a própria hipófise, ou pode ser um tumor de secreção ectópica. Para tirar a dúvida, podemos optar por exames de imagem. Caso eles ainda sejam inconclusivos, aí a gente parte pra uma técnica bem interessante, que é a análise do sangue proveniente de uma veia específica do cérebro, chamada seio petroso, que recolhe os hormônios secretados pela hipófise.
O cateterismo seletivo do seio petroso recolhe o sangue dessa veia, rico em hormônios do EHH. Aí você mede o que vem de lá. Se os níveis de ACTH na amostra estão baixos, então o ACTH está vindo, na verdade, de outro lugar, ou seja, secreção ectópica.
E O TRATAMENTO?
Se for o caso de um tumor nas próprias glândulas suprarrenais, o tratamento é cirúrgico, se for possível. Você explora a glândula e remove o tumor. Infelizmente, a maioria dos pacientes portadores de carcinoma suprarrenal morre dentro de 3 anos após o diagnóstico, mesmo com intervenção cirúrgica, devido a metástases para o fígado e pulmões. Existe uma droga que serve como inibidora da produção de cortisol e esteróides suprarrenais, que é o mitotano, muitíssimo semelhante – pasmem – ao DDT. Pra quem sabe química, eles são isômeros. Tóxico, nem um pouco, né? A vantagem dessa droga é que, ao inibir o trabalho da glândula, inibe também a reprodução celular e diminui a possibilidade de metástase.
Agora, se o caso é um tumor produtor de ACTH, temos duas possibilidades. Primeiro, um tumor de secreção ectópica. É um caso complicado, tornando-se necessário achar o tumor e avaliar a possibilidade de remoção, tratamento e realização de metástases. Um tratamento, em certo ponto controverso, é a adrenalectomia, ou seja, a remoção das glândulas suprarrenais. O raciocínio é mais ou menos esse: se alguém tá mandando elas trabalharem e a gente não pode parar esse chefe, então a gente demite o empregado e não vai ter ninguém pra cumprir as ordens. Não é difícil perceber que esse tratamento é bastante agressivo e diminui bastante a sobrevida. Existe a chamada suprarrenalectomia clínica, que consiste na administração de medicamentos, como o cetoconazol, mitotano oumetirapona, que inibem o trabalho da glândula sem a necessidade de intervenção cirúrgica.
Segundo, se o caso é um tumor hipofisário, existe sempre a possibilidade de realização da cirurgia de retirada, chamada transesfenoidal. Aquela do nariz, que eu falei lá em cima. Apesar de simples, esse tratamento tem a questão do acompanhamento a longo prazo para avaliar a volta de um tumor, como já foi dito, e pode ser complementado por radioterapia também, além de remedinhos que inibem a produção hipotalâmica de CRH, que são os antagonistas hipotalâmicos da serotonina e os inibidores da GABA-transaminase, só pra citar.
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